segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Bhukha

Homem em Bodh Gaya
Não vou poder dizer, não sabia, não vi! Vai ser impossível me explicar. Cada rosto, cada olhar, cada expressão, cada mão estendida é um clamor, um terrível clamor. Estes personagens existem por todo o mundo. E eles gritam, num silêncio rouco. E eles choram, num olhar seco, sem uma gota de esperança. São cidadãos de uma terra seca, e muitos imaginam que Deus a abandonou. Quando eles olham, fitam o nada; quando sorriem, os lábios carregam amargura, e expressam a tristeza interior mais profunda que o abismo do oceano. O abismo da alma... quão profundo e impenetrável é esta escuridão.
Tento entender através de um simples contato quem é aquela alma, o que ela pensa, como ela vive, mas a barreira da cultura e do idioma é muito grande, quase impenetrável. Busco a linguagem dos sinais pelos sentidos: cheirar, ver, ouvir, tocar...   “sorrir”: s-o-r-r-i-r... não há como fazer isso diante de tanta desilusão, tanta desesperança. É apenas uma pessoa, como zumbi desalmado, que vagueia pelas ruas, se apodrecem pelos casebres. Carregam o “carma”, alguns são “intocáveis”, na casta e no sentido mais forte da própria palavra. Estão imundos, dias e dias sem banho, barba carregada de fungos, furúnculos e pó por sobre a roupa e pele. Parecem estátuas ambulantes, com o olhar vazio, sem vida, sem lágrima, sem alma.
Jovem em Bhubaneswar

Como alcança-los meu Deus? Como mudar-lhes a vida? Onde buscar forças, recursos, para ajudá-los? Qual é o caminho da esperança? Onde é sua morada? Se há uma saída, onde ela se encontra? Meu coração sangra, chora por dentro, incapaz, desejando parar para não ver a dor deles. Como Senhor, poderia esta pessoa que está na minha frente chegar a Ti? Eu sei que, saindo daqui, minha vida continua, mas a vida dela também continuará, não só perambulando, mas também em minha mente, atormentando meus sonhos. Elas são um grito enorme de socorro. Eu as vi por um breve momento, mas Tu as vês continuamente, e eu sei que foi por elas também que Tu sangraste. Creio em Ti e minha esperança e de um dia poder contemplar teu rosto, mas elas, que esperança tem, se nem sabem que Tu existe?

Contemplar os perdidos sem poder ajudá-los é sofrer. Quando estava vindo de Bodh Gaya, deitado confortavelmente em minha cama, olhava pela janela, e me sentia deslizar junto com o trem pelos trilhos. Ele diminuiu consideravelmente a velocidade por se aproximar de uma estação. A paisagem já seguia pela janela mais lentamente, dando tempo à minha mente de fixá-las melhor. Quando a estação chegou e o trem seguia, minha janela parou quase na frente de uma garota que chamarei de Bhukha, provável idade de 14 anos, magra, roupas festivais cobrindo todo o corpo. Da janela pude ver que ela estava também deitada sobre monturos de roupas e cobertores. 
Bhukha
Ela observava o trem chegar, curiosa para poder ver alguém na janela. Curioso por ver aquela criaturinha, me firmei na cama, pernas cruzadas, para poder contemplar melhor. Assim que ela me viu, estendeu a mão pequena e a levou à boca, indicando que queria comida. Nossa conversa foi por sinais. Disse que não tinha. Insistiu, levando a mão à boca. Respondi que não tinha e ainda através de sinais, falei com ela para ir para a escola. Bhukha abanou o braço freneticamente dizendo que a escola ficava longe e que não tinha nada para ela. Então ela se levantou e veio em minha direção. Pés descalços, chegou perto da janela e fez o mesmo gesto. Peguei o celular para tirar a foto. Havia sombra onde ela estava e pedi para chegar para a luz. Assim que o fez, tirei várias fotos. Ela, lá fora, continuou pedindo comida. Disse que a janela não se abria. Respondeu para eu sair pela porta do vagão. Como não tinha comida, saquei da carteira 30 rupias e sai da cama. Cheguei à porta e ela estava lá. Lhe passei o dinheiro. Recebeu, mas disse que queria comida. Eu não tinha comida mesmo. Havia soldados do exército na estação. Iriam embarcar. Eles, curiosos, observavam aquela cena. Um homem, assentado perto de uma pilastra, falou com ela em tom nervoso. Ela voltou para sua cama e se deitou. Me aproximei dela e tirei uma foto. 
Homem em Bodh Gaya
Voltei para o vagão e minha cama. De lá, através de sinais, disse a ela que Jesus a amava, tocando na palma das mãos com o indicador. Não sei se ela entendeu, certamente que não. Estendeu a mão mais uma vez, pediu comida. Respondi que não tinha. Um casal chegou e ficou no compartimento em frente ao meu. Em uma sacola percebi que tinham banana. Pedi uma, peguei duas, e levei para a garota. O trem já estava saindo. O soldado do exército, que havia visto toda a movimentação entre Bhukha e eu estava à porta. Abri espaço entre ele e sua metralhadora. A garota ficava para trás. Gritei para ela, que olhou. Não queria jogar as bananas, por isso pulei do trem como um gato, pus as bananas maduras no chão, e tive que correr para entrar no vagão novamente. Da porta, junto ao soldado, vi que ela veio andando calmamente para pegar a fruta. O trem, alcançando velocidade, a deixava mais e mais longe de mim. Foi tudo o que eu pude fazer por ela. Mas, meu desejo interior era ter ficado ali, morar ali, cuidar dela, ser seu pai, dar comida abundante, roupa limpa, casa pra morar, educação, formação e formar a vida de Deus naquele coraçãozinho. Ou mesmo, levá-la comigo, naquele trem. Adotá-la como filha, dar a Bhukha um lar. Mas isso, para mim, naquele momento, era um sonho que ficava para trás à medida que o trem avançava. Deitei e fiquei pensando sobre tudo aquilo. Bhukha ficou em minha mente por vários kilômetros. Foram momentos de tristeza e reflexão sobre a vida humana, e as lutas que cada um enfrenta.
Menino indiano discípulo de
Bhuda
Homem tocando seu instrumento

Jovem pintando imagem de Bhuda













Mulher pedinte







Mendigo na estação de Gaya


























Estação onde encontrei Bhukha

Bhukha

Bhukha



















                                                       A propósito, Bhukha significa “Faminta”.

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Cortando cabêlos

Não sou Budista, isso é apenas
um pano que comprei pra
me aquecer no inverno.
Hoje resolvi radicalizar. E de uma forma que nunca fiz em minha vida. Rapei a cabeça. A primeira vez que estive aqui na India fui a um salão e pedi para que meu cabelo fosse cortado. O cara me perguntou se era “Full” ou “Half”. Estas palavras significam Completo e Metade, respectivamente.  Imaginei minha cabeça como daqueles índios, rapada uma metade, ou um certo tipo de “punk”, sei la, respondi na lata: full. Só que, para o cabeleireiro, "full" era fazer cabelo, barba, bigode, massagem e algo mais. Eu, inocente, recebi inicialmente, a tesoura, que cortava meus parcos cabelos de forma suave e continua. Quando a primeira fase passou, veio a segunda, que era lavá-los com uma certa espuma que quase tomou minha cabeça toda. E depois de secar e tirar tudo isso, mais alguns detalhes no corte e então começou uma massagem no cocoruto. Enquanto estava somente na cabeça, tudo bem, mas quando desceu para as costas, passou para os ombros, desceu pelos braços e chegou  às mãos, ai, a coisa ficou séria.
“Este cara vai se apaixonar” – pensei. A massagem foi pesada. O indiano era bom no negócio. Queria fazer o melhor. A mim, aquela massagem não me trouxe alivio de nada, pois não estava precisando dela, mas foi bom para eu ter uma experiência transcultural nessa terra necessitada.
Mas hoje, 3 anos depois, estou no mesmo lugar, Bodh Gaya. Na mesma casa em que estive, rua Pachati, mas o barbeiro que tinha sua lojinha em frente ao templo Mahabody se foi. Por aqui, tudo mudou. Bombas foram explodidas por terroristas nas imediacões do templo e a policia cercou o local, mandou todos os comerciantes saírem, derrubou todas as lojas e construiu muros e cercas, reforçando a segurança do local. 
Rivalver e Bruno, missionários na Índia.

Ontem a noite falei para Lucas,  meu filho e o Bruno, missionário que mora na casa onde ficamos da ultima vez: “Amanha vou sair e rapar minha cabeça”. E foi o que fiz. Acordei 9 hrs, tomei café e desci, determinado. Dei apenas alguns passos descendo a rua e vi a barbearia aberta. Apos me sentar na poltrona ultra-mega-confortável de madeira bruta, um lençol azul foi colocado ao redor de meu pescoço. Olhei para mim mesmo. Pálpebras já cansadas, pele começando a se enrugar, algumas manchas insistentes em me amar ate a morte, barba crescendo de novo, grisalha... éééé, o tempo passa voando, pensei. O indiano, magro, franzino, lotado de cabelo na cabeça, preparava a navalha. Apos molhar meus ainda parcos cabelos, veio uma pequena sessão de massagem. Me lembrei do passado, da tortura anterior. Sei que não vai acontecer de novo, aqui é apenas rapar. O trabalho dele começou pela parte de trás da cabeça, e eu não via como ficava. Então veio a parte da frente, e ai, eu vi a luz...
Cegos esmolando nas ruas de Bodh Gaya.


Tive que dobrar meu pescoço para o trabalho da navalha. No meu colo os cabelos caiam aos cachos. Pelo espelho, vi o caminho feito pelo lado direito da cabeça. Não há como voltar. É esperar acabar. E com o pescoço dobrado, me lembrei de como Jesus se dobrou  para os flagelos dos romanos. Me lembrei das chicotadas, dos acoites, da coroa, do cuspe, da cruz... que comparação mais tosca Rivalver, nem se compara, me repreendi. Claro, nem se compara. Eu estava renunciando a alguns fios de cabelos, Ele renunciou tudo o que tinha. Mas eu estava ali por causa Dele, e dobrar o pescoço para perder alguma coisa, mínima que seja, me humilhou, e meus olhos se encheram de água, não por minha causa, mas por causa Dele, Jesus, que se dobrou por mim, se humilhou por mim, morreu por mim, ressuscitou por mim, voltará por mim. Alguém poderia falar agora: "que bobeira". Pode ser. Mas para mim teve muito significado.
E esta parte de “eu vi a luz” é apenas meu lado humorístico se manifestando, não o leve a serio. 
Jovens budistas observando um rapaz
pintando uma estátua de Bhuda
no Monastério Tergar, em Bodh Gaya.

Bj no coração de todos.

Rivalver Lopes