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Homem em Bodh Gaya |
Não vou
poder dizer, não sabia, não vi!
Vai ser impossível me explicar. Cada rosto, cada olhar, cada expressão, cada
mão estendida é um clamor, um terrível clamor. Estes personagens existem por
todo o mundo. E eles gritam, num silêncio rouco. E eles choram, num olhar seco,
sem uma gota de esperança. São cidadãos de uma terra seca, e muitos imaginam
que Deus a abandonou. Quando eles olham, fitam o nada; quando sorriem, os
lábios carregam amargura, e expressam a tristeza interior mais profunda que o
abismo do oceano. O abismo da alma... quão profundo e impenetrável é esta
escuridão.
Tento entender através de um simples contato quem é aquela
alma, o que ela pensa, como ela vive, mas a barreira da cultura e do idioma é
muito grande, quase impenetrável. Busco a linguagem dos sinais pelos sentidos:
cheirar, ver, ouvir, tocar... “sorrir”: s-o-r-r-i-r... não há como fazer
isso diante de tanta desilusão, tanta desesperança. É apenas uma pessoa, como
zumbi desalmado, que vagueia pelas ruas, se apodrecem pelos casebres. Carregam o
“carma”, alguns são “intocáveis”, na casta e no sentido mais forte da própria
palavra. Estão imundos, dias e dias sem banho, barba carregada de fungos, furúnculos
e pó por sobre a roupa e pele. Parecem estátuas ambulantes, com o olhar vazio,
sem vida, sem lágrima, sem alma.
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Jovem em Bhubaneswar |
Como alcança-los
meu Deus? Como mudar-lhes a vida? Onde buscar forças, recursos, para ajudá-los?
Qual é o caminho da esperança? Onde é sua morada? Se há uma saída, onde ela se
encontra? Meu coração sangra, chora por dentro, incapaz, desejando parar para
não ver a dor deles. Como Senhor, poderia esta pessoa que está na minha frente
chegar a Ti? Eu sei que, saindo daqui, minha vida continua, mas a vida dela
também continuará, não só perambulando, mas também em minha mente, atormentando
meus sonhos. Elas são um grito enorme de socorro. Eu as vi por um breve
momento, mas Tu as vês continuamente, e eu sei que foi por elas também que Tu
sangraste. Creio em Ti e minha esperança e de um dia poder contemplar teu
rosto, mas elas, que esperança tem, se nem sabem que Tu existe?
Contemplar os perdidos sem poder ajudá-los é sofrer. Quando estava
vindo de Bodh Gaya, deitado confortavelmente em minha cama, olhava pela janela,
e me sentia deslizar junto com o trem pelos trilhos. Ele diminuiu
consideravelmente a velocidade por se aproximar de uma estação. A paisagem já
seguia pela janela mais lentamente, dando tempo à minha mente de fixá-las
melhor. Quando a estação chegou e o trem seguia, minha janela parou quase na
frente de uma garota que chamarei de Bhukha, provável idade de 14 anos, magra,
roupas festivais cobrindo todo o corpo. Da janela pude ver que ela estava
também deitada sobre monturos de roupas e cobertores.
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Bhukha |
Ela observava o trem
chegar, curiosa para poder ver alguém na janela. Curioso por ver aquela
criaturinha, me firmei na cama, pernas cruzadas, para poder contemplar melhor. Assim
que ela me viu, estendeu a mão pequena e a levou à boca, indicando que queria
comida. Nossa conversa foi por sinais. Disse que não tinha. Insistiu, levando a
mão à boca. Respondi que não tinha e ainda através de sinais, falei com ela
para ir para a escola. Bhukha abanou o braço freneticamente dizendo que a
escola ficava longe e que não tinha nada para ela. Então ela se levantou e veio
em minha direção. Pés descalços, chegou perto da janela e fez o mesmo gesto. Peguei
o celular para tirar a foto. Havia sombra onde ela estava e pedi para chegar
para a luz. Assim que o fez, tirei várias fotos. Ela, lá fora, continuou
pedindo comida. Disse que a janela não se abria. Respondeu para eu sair pela
porta do vagão. Como não tinha comida, saquei da carteira 30 rupias e sai da
cama. Cheguei à porta e ela estava lá. Lhe passei o dinheiro. Recebeu, mas
disse que queria comida. Eu não tinha comida mesmo. Havia soldados do exército
na estação. Iriam embarcar. Eles, curiosos, observavam aquela cena. Um homem,
assentado perto de uma pilastra, falou com ela em tom nervoso. Ela voltou para sua
cama e se deitou. Me aproximei dela e tirei uma foto.
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Homem em Bodh Gaya |
Voltei para o vagão e
minha cama. De lá, através de sinais, disse a ela que Jesus a amava, tocando na
palma das mãos com o indicador. Não sei se ela entendeu, certamente que não. Estendeu
a mão mais uma vez, pediu comida. Respondi que não tinha. Um casal chegou e
ficou no compartimento em frente ao meu. Em uma sacola percebi que tinham
banana. Pedi uma, peguei duas, e levei para a garota. O trem já estava saindo. O
soldado do exército, que havia visto toda a movimentação entre Bhukha e eu estava
à porta. Abri espaço entre ele e sua metralhadora. A garota ficava para trás. Gritei
para ela, que olhou. Não queria jogar as bananas, por isso pulei do trem como
um gato, pus as bananas maduras no chão, e tive que correr para entrar no vagão
novamente. Da porta, junto ao soldado, vi que ela veio andando calmamente para
pegar a fruta. O trem, alcançando velocidade, a deixava mais e mais longe de
mim. Foi tudo o que eu pude fazer por ela. Mas, meu desejo interior era ter
ficado ali, morar ali, cuidar dela, ser seu pai, dar comida abundante, roupa
limpa, casa pra morar, educação, formação e formar a vida de Deus naquele
coraçãozinho. Ou mesmo, levá-la comigo, naquele trem. Adotá-la como filha, dar
a Bhukha um lar. Mas isso, para mim, naquele momento, era um sonho que ficava
para trás à medida que o trem avançava. Deitei e fiquei pensando sobre tudo
aquilo. Bhukha ficou em minha mente por vários kilômetros. Foram momentos de
tristeza e reflexão sobre a vida humana, e as lutas que cada um enfrenta.
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Menino indiano discípulo de
Bhuda |
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Homem tocando seu instrumento |
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Jovem pintando imagem de Bhuda |
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Mulher pedinte |
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Mendigo na estação de Gaya |
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Estação onde encontrei Bhukha |
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Bhukha |
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Bhukha |
A propósito, Bhukha significa “Faminta”.